Assisti essa semana ao filme francês Anatomia de uma queda, vencedor do Oscar de melhor roteiro original. Trata-se de um drama familiar que se agudiza com a morte do marido, a princípio um caso de suicídio, mas que toma outros caminhos a partir do olhar da perícia criminal, que passa a considerar a esposa como principal suspeita de matar o marido. No meio do turbilhão, um garoto de 11 anos, filho do casal, que além de encontrar o pai morto, tem que enfrentar as pressões da justiça durante a investigação e o julgamento da mãe.
Durante o julgamento, fatos sobre o casal vão subindo à tona e percebe-se, claramente, um processo de demonização da esposa por parte da promotoria e das testemunhas masculinas, usando até mesmo trechos dos livros escritos por ela para encontrarem evidências de sua culpa. A mim pareceu um didático e óbvio exemplo do modus operandi patriarcal julgando, sem piedade e com altas doses de misoginia, a vida de uma mulher livre e bem-sucedida no ofício que exerce.
Qual foi o pecado de Susan, a protagonista? Ela é uma escritora consolidada, escreve e publica muito, cumprindo diversos compromissos profissionais, por isso, ainda é tradutora para complementar a renda (nem na França se vive de literatura!). O marido queria escrever, mas não consegue, há anos tenta se estabelecer no mundo editorial sem sucesso; tornou-se professor universitário apesar de não gostar do que faz e cuida do filho do casal que tem deficiência visual advinda de um acidente pelo qual se sente culpado. Além disso, enfrenta episódios de depressão.
O pecado de Susan é não sentir culpa por deixar o filho aos cuidados do marido para trabalhar; nem por ter tido um caso com uma mulher em uma fase conturbada da relação dos dois (ele também a traiu), nem por tê-lo culpado pelo acidente do filho logo após o ocorrido, nem por fazer bem aquilo que ele queria fazer e não tem competência para tal. Uma mulher sem culpa só pode ser vilã diante do machismo.
A culpa é quase um acessório feminino imposto pelo modelo de vida patriarcal, e romper com esse paradigma fragiliza os homens e demoniza as mulheres. Quantos homens fracassados imputam às suas mulheres essa responsabilidade? A maioria, basta um olhar mais atento e inúmeros casos pulam na nossa frente, mais sutis ou escancarados. Mesmo quando tudo é acordado entre o casal, o trabalho de cuidado ainda é visto como trabalho de mulher e os homens que o assumem, como vítimas de mulheres más.
No filme, Susan é inocentada do crime de homicídio graças à sensibilidade e perspicácia do filho. Porém, pode continuar sendo acusada pela fragilidade e suicídio do marido. Assim como as mulheres livres e combatentes do patriarcado são sempre rotuladas e as vítimas de estupros e feminicídios são culpabilizadas. Maguerite Duras, disse: “os homens odeiam mulheres que escrevem” e acrescento, odeiam mulheres sem culpa de viver segundo sua própria régua. E por esse ódio eles agridem, matam, abandonam e morrem.
Assistam!